Escalpo

A preciosidade dessa HQ, baseada no real e mergulhada no mundo do drama policial, é inconcebível. Trata-se de uma das melhores histórias já feitas nos quadrinhos adultos.

Escalpo, com roteiro de Jason Aaron (Justiceiro MAX, Thor, Conan) e ilustrada pelo artista sérvio R.M. Guéra (Tex), teve sua primeira edição lançada em março de 2007 e foi concluída com 60 edições, no ano de 2012. Esse quadrinho está além das histórias convencionais e encaixa-se perfeitamente em um thriller de faroeste americano regado a muito whisky e Johnny Cash. Segundo Aaron, a trama principal da série foi inspirada no assassinato de dois agentes do FBI (Jack Coler e Ronald Williams) mortos no ano de 1975 na reserva indígena Pine Ridge, localizada em Lakota, no estado americano de Dakota do Sul — mesmo local onde Escalpo é retratado. O autor não confirmou, mas um dos seus personagens é parece muito ter sido baseado no ativista Leonard Peltier, incriminado sem provas pelo assassinato dos agentes do FBI.

Vale ressaltar que o centro da história é a reserva indígena Rosa da Pradaria, um local tomado pelo tráfico de drogas, prostituição, assassinatos e outros crimes, que guarda em seu solo segredos e mistérios que serão desmembrados ao longo de toda a trama de Escalpo. O cenário funciona como escape para críticas sociais, como o péssimo tratamento que o governo dá aos indígenas, dando-lhes o “direito” de viver em suas próprias terras a fim de manter sua cultura e costumes ainda vivos.

É nesse ambiente caótico e degradado que Dashiell Cavalo Ruim, um nativo da reserva que, após muitos anos morando longe dali, retorna como um agente do FBI infiltrado no cartel do magnata mafioso Corvo Vermelho, este, democraticamente eleito dono da reserva. O intuito de Dash é aproximar-se de Corvo Vermelho e apanhar provas da culpa dele no assassinato de dois agentes do FBI dentro da reserva 30 anos atrás. Ainda que o fio condutor seja Dash, o núcleo de personagens que ingressa na história é grande, mas enriquecem a obra, dando abertura para novas subtramas que alargam o cenário da reserva e mostram ao leitor que o caos daquele local vai muito além das suas fronteiras.

A forma como Aaron conduz a história é o corpo da obra, personagens coadjuvantes ganham atenção redobrada e desenvolvimentos minuciosos. O background criado para cada um é dissolvido ao longo da trama, enriquecendo a linha da história, desenvolvendo a narrativa principal e criando situações em que não há como distinguir o mocinho do vilão, deixando claro apenas a situação de pessoas lutando para sobreviverem em um local esquecido por Deus, mas frequentado por demônios e fantasmas.

As ações que dão combustão à trama não requerem consequências extravagantes ou irreais para forçar um prosseguimento ou novos rumos para a história, para quem pode achar estranho Corvo Vermelho construir um cassino em uma reserva indígena que fica no meio do nada, a história se justifica de forma clara e sem enrolação. Essa trama centrada e pé no chão é espelhada diretamente na leitura que, por si só, é fluida e de uma facilidade impressionante, uma vez que as gírias do povo local são bem traduzidas e espontaneamente reconhecidas.

Se o roteiro é o corpo da obra, a arte de R.M. Guéra é a alma de Escalpo. Sua paleta opaca e seu traço sujo e rebuscado dão a vida que Rosa da Pradaria precisa. Guéra impõe em sua narrativa o caos, a violência e a depressão que um mundo sujo e esdrúxulo, como o de Escalpo, necessita. Por diversas vezes, palavras são trocadas por quadros bem estruturados e ilustrados, em meio ao grid que brinca, ora por páginas delimitadas por calhas, ora por quadros que estouram a sangria da página, Escalpo é uma obra de arte visual.

As capas de todas as edições ficaram nas mãos do capista, Jock (Demolidor, Wolverine, Batman). Sua arte desconexa é chamativa e pesada, o timbre certo para a porta de entrada do leitor.

Ainda que sua trama tenha um viés mais sério e ríspido no sentido de demonstrar principalmente o sofrimento e o esquecimento de um povo em meio a um mundo que busca preservar mais o seu futuro, esquecendo suas raízes e passados, Escalpo é uma ótima opção para quem quer ler algo fora do nicho convencional heroico.

Publicado no Brasil primeiramente nas edições da revista mensal Vertigo, da Panini Comics, o quadrinho foi relançado recentemente em cinco volumes capa dura e papel couché, que compilam as 60 edições mais as extras, e é possível encontrá-los em livrarias especializada

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